quinta-feira, 28 de março de 2024

Só com o coração se vê











  


Leonardo da Vinci, "Briza maxima", c. 1481-1483

Com a paixão se vive e se desvive, durante muitos anos assim foi, vivia para ela e por ela desvivia, não podia viver com ela, sem ela não viveria.

Alegre, Manuel, “A Terceira Rosa”, Lisboa, Leya, 2009, p. 84


Com a paixão ainda vive desvivendo

Se visse com este olhar certamente amaria

Mas ainda que com a paixão vá vivendo

Melhor seria que amando sem ela vivesse.


Pois melhor é morrer que viver sem amar,

Do que com a paixão ir vivendo sem viver.

Todos, sem olhar se podem apaixonar

Mas só com o coração se vê e consegue ver.


Coitado de quem não deseja viver e desviver,

Pobre de quem vai vendo os anos passar

Com uma paixão vivida sem viver,

Melhor seria olhar do que sem olhos ver.


01.03.2024


terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Verbo e pensamento

 









Que estranho é algo que permanece imóvel

Como se reduzido a uma continuidade

Espácio-temporal incompreensível e ignóbil

Como uma mónada isolada na sua unidade.


Uma eternidade se joga no presente do indicativo

Mas o verbo precede ao pensamento

Discursivo no ser ante predicativo

E toda a eternidade se reduz a um momento.


Jesus ajuda quem não é religioso

Subitamente no deserto surge Satanás

Rodeia-o acusando-o de ser zeloso

Mas força maior o impele para trás.


Quem é educado para ser honesto

Aprende a custo que pode estar errado

Quando vem um presidente ou aldrabão

Que rouba acusando a vítima de ladrão.


02.11.2022

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Predeterminação

 


Dina de França, acrílico s/b tela    
 
@Carla Cóias
                                  

Acasos fortuitos são impossibilidades

No reino do predeterminado,

Não existem meras casualidades

Perante o inexorável fado.


Mas quando a linha condutora

Do destino é que dita a acção,

Então que verdade redentora

Liberta o homem de sua condição?


Plano divino que aceito humilde

Ensina-me a viver do porvir ciente,

Apesar do que sucede amiúde

Sem a evidência de Plano aparente.



07.09.2021

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Senhora Coordenadora

 









Palácio de Biester, pormenor do fresco no teto do quarto de hóspedes



Certa coordenadora de greves dizia um dia

Que na sociedade eu seria apenas um número

Não importava tudo o que eu era ou fazia,

Condição humana, meu destino e não o que quero.


Como se irremediavelmente entregue ao fado

Sem apelo nem agravo, qual casca de noz

Vogando as enormes vagas no bravo mar eivado

A elas nem o povo pode sequer levantar a voz.


Perante tais elucubrações, como ficar calado?

Um dia haverá em que a tirania será de finda era,

Como Atlas criou Gibraltar sem o passar a nado

Nos mesmos ombros em que carrega, condenado, a Terra.


Cantemos, pois, inspirados por ninfas e nereidas

Pois se levamos a eito o peso da opressão,

Temos esta canção como a semente das queridas


08.05.2021

terça-feira, 2 de maio de 2023

Fantasia e Imaginação

 

















Aguarela de Cláudia Ribeiro (29,7x42cm)


Voando tão alto a fantasia

Contempla minúscula em baixo

A realidade que se extasia

Tendo ambas fim cabisbaixo.

 

Mas, colaborando com a imaginação

Pode haver justa conciliação

E o voo alto e elevado da fantasia

Pode encontrar o real em harmonia.

 

São duas vertentes num mesmo nume

E nessa união trasvasante de emoção 

Ascende o poeta na montanha o cume

Aos píncaros com prazer no coração.

 

2023.04.25

terça-feira, 4 de abril de 2023

Aleluia

Vivenda Aleluia (foto: Diário de Aveiro)



Tu demonstraste o que é a arte

Escrevendo sinais na poeira

E deixaste para mim a melhor parte

Ficando com trabalhos e canseira.


Ao estar além de toda a definição

O resultado de tão apurado labor

Possuo sempre, obra e sensação,

Que nasceu de teu parto, com dor.


Afinal, quem dá nome à obra de arte

Mais que o criador, com decoro,

É o autor que, inventando, comparte,

Deixando criação em pesar e choro.


17.06.2021





quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Omnia fui nihil expedit

 

Dragão, escadas do Palácio Biester


Tudo o que era para fazer, já fiz;

Agora um incomensurável e tolo tédio

Preenche-me por completo e faz-me feliz.


"Fui tudo, nada vale a pena", disse o poeta

E agora sou na pele, como ele, um petiz

Que joga à bola e no todo se completa.


Ai quem me dera nada mais haver no universo!

Uma imensa quantidade de galáxias e buracos negros

Que se reduz ao poder sintetizador de um verso.


Todos os insondáveis mistérios e inauditos segredos 

Se resumem a essa plenitude sem terminus nem reverso

E quem subitamente entender abandona todos os medos


E, nesse instante, sem sombra de variação, 

Vive o poeta moribundo desde que dormita no berço

Nessa incompreensível e única aflição

De na acção penetrar o cosmos ficando imerso.



15.12.2022